Um traço característico do homem literalmente iletrado¹ é que ele considera "Eu já li isso" um argumento conclusivo contra a leitura de qualquer obra. Todos nós conhecemos mulheres que lembram tão nebulosamente de um dado romance que precisam despender meia hora em uma biblioteca folheando-a, antes de ter certeza de que já o leram. Mas no momento em que têm segurança disso, rejeitam-no imediatamente. Para elas, o romance morreu como um fósforo riscado, um velho bilhete de trem ou um jornal de ontem; elas já o usaram. Aquele que leem grandes obras, em contrapartida, lerão a mesma obra dez, vinte ou trinta vezes ao longo de suas vidas.
A primeira leitura de uma obra literária para os literatos² é, com frequência, uma experiência tão importante e significativa que apenas experiências como o amor, a religião ou o luto podem servir como parâmetro de comparação. Toda a sua consciência é alterada. Eles se transformam no que não eram antes. Mas não há nem indício de algo assim entre outros tipos de leitores, que quando terminam um conto ou um romance, nada de muito especial ou nada – simplesmente – parece ter acontecido a eles.
Uma obra de (qualquer) arte pode tanto ser “recebida” como “usada”. Quando a “recebemos”, exercemos nossos sentidos e imaginação e vários outros poderes, de acordo com um padrão inventado pelo artista. Quando a “usamos”, acabamos por tratá-la como um auxílio para as nossas próprias atividades. No primeiro caso – para empregar uma imagem antiquada – é como ser levado para um passeio de bicicleta por uma pessoa que pode conhecer estradas que nunca exploramos. O outro caso é como acoplar um daqueles pequenos motores à nossa própria bicicleta e, então, seguirmos por um de nossos passeios familiares. Esses passeios, por si só, podem ser bons, ruins ou indiferentes. Os “usos” que os muitos fazem das artes podem ser ou não ser intrinsecamente vulgares, depravados ou mórbidos. Isso é apenas uma possibilidade. Mas “usar” é inferior a “receber” porque a arte, se mais usada do que recebida, se restringe a facilitar, abrilhantar, aliviar ou suavizar a nossa vida, e nada acrescenta a ela.
¹ Literalmente iletrado é o termo utilizado como tradução para unliterary; iletrado aqui, portanto, não corresponde a analfabeto, mas diz respeito a alguém pouco cultivado no mundo das letras, sem repertório de leituras canônicas, sem sensibilidade desenvolvida para o campo literário. (N.T.)
² Literato ou literalmente letrado é o termo utilizado daqui por diante, em oposição à literalmente iletrado, termo explicado na nota anterior. (N.T.)
C. S. Lewis,
Um Experimento na Crítica Literária
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