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A base das mitologias

Em Marte as próprias florestas são de pedra; em Vênus as terras nadam. Pois agora ele já não pensava neles como Malacandra e Perelandra. Ele os chamava pelos seus nomes telurianos. Com um assombro profundo, pensou consigo mesmo: "Meus olhos viram Marte e Vênus. Eu vi Ares e Afrodite."

Ele lhes perguntou como chegaram ao conhecimento dos antigos poetas de Tellus. Quando e de quem os filhos de Adão aprenderam que Ares era um guerreiro e que Afrodite surgiu da espuma do mar? A Terra tinha ficado sitiada, um território ocupado pelo inimigo, desde antes do início da história. Os deuses não têm nenhuma comunicação lá. Então como temos conhecimento deles? O conhecimento, disseram-lhe, chega depois de muitas voltas e através de muitos estágios. Existe um ambiente de mentes, assim como um de espaço. O universo é um: uma teia de aranha em que cada mente vive ao longo de cada fio, uma enorme galeria sussurrante em que (salvo pela ação direta de Maleldil), embora nenhuma notícia seja transmitida sem alteração, nenhum segredo consegue ser guardado com rigor.

Na mente do Arconte caído sob cujo domínio nosso planeta geme ainda está viva a lembrança da Imensidão dos Céus e dos deuses com quem um dia ele conviveu. E mais, na própria matéria de nosso mundo, os traços da comunidade celeste não estão totalmente perdidos. A memória passa através do ventre e paira no ar. A Musa é verdadeira. Como diz Virgílio, um leve sopro chega até mesmo às gerações mais recentes. Nossa mitologia está baseada em uma realidade mais sólida do que sonhamos; mas ela também está a uma distância quase infinita daquela base. E, quando lhe disseram isso, Ranson finalmente compreendeu por que a mitologia era o que era: vislumbres de beleza e força celestes caindo em uma selva de imundícies e imbecilidade. Seu rosto ardia por nossa espécie quando ele olhava para os verdadeiros Marte e Vênus e se lembrava das tolices que foram ditas a seu respeito na Terra.

Trecho de Perelandra, segundo livro da Trilogia Cósmica de C. S. Lewis

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